A esperança é uma âncora
"Sabias que o símbolo da esperança é uma âncora?".
Ela nao sabia; jamais ouvira tal coisa. Sorriu:
"Onde descobriste isso?".
Respondia a qualquer pergunta com outra pergunta. Perguntavam-lhe, por exemplo, "Que horas são"? E ela, inquieta, depois de espreitar o relógio:
"Achas que estamos muito atrasados?".
Perguntavam-lhe se tinha gostado do ultimo livro de António Lobo Antunes. Ela pensava um pouco:
"Nao achas que o Prémio Nobel devia ter sido para ele?".
Isso, por vezes, irritava as pessoas. Ninguém gosta de responder a uma pergunta quando está à espera de uma resposta. Ele, no entanto, não se aborreceu. Nunca se aborrecia:
"Diz-me, Tormenta" (dera-lhe esse nome há muito tempo porque a achava bela e perigosa como uma tempestade), "que outra imagem poderia representar melhor a esperança se não uma âncora?".
A aproximação dela parecia transtornar a luz. As árvores e as casas, todos os objectos, se tornavam mais intensos, contra o azul eléctrico do céu, quando aquela mulher estava presente. No dia seguinte, porém, depois que ela se ía embora, ele acordava sempre com a alma em ruínas.
"A gente lança a esperança às aguas revoltas da vida, em meio à tempestade, para não sermos arrastados pelas ondas". Disse-lhe isto sem a olhar, distraído, como se falasse consigo próprio.
"A esperança é por vezes a única coisa que nos sustenta, contra ventos e marés, presos a uma ideia, a um país, a uma mulher. Noutras ocasiões, reconheço, a esperança mantém-nos firmemente amarrados, sim - mas a um erro; abandonando a esperança talvez a tempestade nos levasse até uma praia distante e descobrissemos que, afinal, podiamos viver de novo e ser felizes". Ela não respondeu. Raramente respondia se não lhe colocassem directamente uma questão, e nessa altura respondia com outra pergunta. Já expliquei isto. Era irritante, mas ele nao se irritava nunca. "Diz-me, Tormenta, se nao estou amarrado a um erro quando alimento a esperança de que tu possas mudar?"; no fundo, no fundo lodoso da sua alma em ruínas, ele ja sabia a resposta: "ou então de que eu possa mudar?". Suspirou: "Um de nós vai ter de mudar para que tudo continue na mesma, nao é assim?".
A mulher olhou-o de frente. Um vento frio arrepiou as folhas das casuarinas. O mar, diante deles, estava escuro e tenso, como um grande animal que se preparasse para formar o salto. Ela tinha olhos cinzentos (e nenhuma esperança la dentro). "Ainda gostarias de mim se eu mudasse?".
Ele sabia que não. Quem ama as tempestades nao precisa de âncoras.
Crónica José Eduardo Agualusa
Ela nao sabia; jamais ouvira tal coisa. Sorriu:
"Onde descobriste isso?".
Respondia a qualquer pergunta com outra pergunta. Perguntavam-lhe, por exemplo, "Que horas são"? E ela, inquieta, depois de espreitar o relógio:
"Achas que estamos muito atrasados?".
Perguntavam-lhe se tinha gostado do ultimo livro de António Lobo Antunes. Ela pensava um pouco:
"Nao achas que o Prémio Nobel devia ter sido para ele?".
Isso, por vezes, irritava as pessoas. Ninguém gosta de responder a uma pergunta quando está à espera de uma resposta. Ele, no entanto, não se aborreceu. Nunca se aborrecia:
"Diz-me, Tormenta" (dera-lhe esse nome há muito tempo porque a achava bela e perigosa como uma tempestade), "que outra imagem poderia representar melhor a esperança se não uma âncora?".
A aproximação dela parecia transtornar a luz. As árvores e as casas, todos os objectos, se tornavam mais intensos, contra o azul eléctrico do céu, quando aquela mulher estava presente. No dia seguinte, porém, depois que ela se ía embora, ele acordava sempre com a alma em ruínas.
"A gente lança a esperança às aguas revoltas da vida, em meio à tempestade, para não sermos arrastados pelas ondas". Disse-lhe isto sem a olhar, distraído, como se falasse consigo próprio.
"A esperança é por vezes a única coisa que nos sustenta, contra ventos e marés, presos a uma ideia, a um país, a uma mulher. Noutras ocasiões, reconheço, a esperança mantém-nos firmemente amarrados, sim - mas a um erro; abandonando a esperança talvez a tempestade nos levasse até uma praia distante e descobrissemos que, afinal, podiamos viver de novo e ser felizes". Ela não respondeu. Raramente respondia se não lhe colocassem directamente uma questão, e nessa altura respondia com outra pergunta. Já expliquei isto. Era irritante, mas ele nao se irritava nunca. "Diz-me, Tormenta, se nao estou amarrado a um erro quando alimento a esperança de que tu possas mudar?"; no fundo, no fundo lodoso da sua alma em ruínas, ele ja sabia a resposta: "ou então de que eu possa mudar?". Suspirou: "Um de nós vai ter de mudar para que tudo continue na mesma, nao é assim?".
A mulher olhou-o de frente. Um vento frio arrepiou as folhas das casuarinas. O mar, diante deles, estava escuro e tenso, como um grande animal que se preparasse para formar o salto. Ela tinha olhos cinzentos (e nenhuma esperança la dentro). "Ainda gostarias de mim se eu mudasse?".
Ele sabia que não. Quem ama as tempestades nao precisa de âncoras.
Crónica José Eduardo Agualusa